Entre Coringa e Gotham City



Por Gabriel Barcelos

21 de outubro de 2019

(Desde que eu assisti a Coringa, tenho algumas ideias que queria escrever. Como é muita coisa, vou dividir em duas partes: uma primeira falando de questões mais políticas e que envolvem a cidade de Gotham e outra onde falo mais do personagem Coringa em si, além de elementos mais cinematográficos) Parte 1: Gotham City

Coringa talvez seja uma das mais relevantes produções culturais da atualidade ao dissecar um tipo importante de subjetividade contemporânea: um sujeito ressentido, por vezes cético (em relação à vida, às instituições, ao futuro) e não raro com uma forte pulsão de destruição. Esta figura não surge do nada, mas é um dos resultados do contexto de um mundo em crise econômica e política, retirada de direitos (como o corte nos programas sociais que garantiam o medicamento de Arthur Fleck), além de, desemprego, precarização dos trabalho e falta de perspectiva para os jovens, tanto material como cultural/filosófica/política).

A partir de uma origem comum, porém, esta subjetividade responde socialmente das mais diferentes maneiras aos dilemas colocados por seu tempo. Ela pode se manifestar, de um lado, em revoltas como Occupy Wall Street e Junho de 2013 no Brasil, grupos como o Anonymous e a retomada da tática Black Bloc. Por outro lado, ela pode se materializar com a eleição de bodes expiatórios canalizadores de ressentimento e ódio, na figura do jovem misógino incel, de ataques de atiradores, na ascensão de grupos fascistas e na chegada ao poder de líderes conservadores.

Não é à toa, portanto, que a recepção ao processo do novo Coringa passou por dois momentos distintos. Mesmo sendo aclamado no Festival de Veneza, muitas primeiras críticas aliavam uma admiração pela obra fílmica a uma preocupação sobre possíveis impactos sociais de sua recepção. Em paralelo a isso e dentro desta curiosa novidade que são os registros de opiniões através meramente de trailers e teasers (talvez fruto da atual “franquização” do cinema), o filme foi visto muitas vezes como um ícone incel (homens jovens que descarregam suas frustrações nas mulheres, com violências simbólicas e físicas, muito presentes na comunidade nerd consumidora de filmes baseados em HQs de super heróis). Alguns destes rapazes até assumiram esta identidade com a obra ainda não exibida, através das redes sociais. Ao chegar às salas comerciais, esta perspectiva não foi totalmente abandonada. Embora o filme não aborde diretamente este tipo de figura social, vemos uma narrativa de um homem destruído de diferentes formas pela sociedade, mas que resolve tomar atitudes violentas para se vingar e se tornar visível. Contudo, esta concepção se juntou também à avaliações positivas por parte do público com uma visão mais anti sistêmica, anticapitalista ou, no mínimo, progressista. Um exemplo claro disso é o texto do também cineasta e relevante militante de esquerda estadunidense, Michael Moore, chamando a atenção especialmente para a presença do levante com máscaras de palhaço contra os ricos e as engrenagens de Gotham como um todo, gerada pelas ações violentas do protagonista.

Posto isso, podemos dizer que a obra de Todd Phillips é a representação de todos estes elementos sociais presentes na atualidade? Sim e não. Para responder isso, é preciso entender aqueles que para mim são os dois principais personagens do filme: Coringa e a própria Gotham City. Uma coisa interessante a ser observada nesta cidade-cenário do universo Batman é que não se trata de um lugar com uma ordem perturbada pela ação do vilão, onde a função do herói é retomar este estágio inicial: os crimes e ações maléficas de vilania são a regra de uma cidade decadente, violenta e caótica, elas são parte constituinte de seu cotidiano. Embora este lado tenha se desenvolvido e se diferenciado ao longo das HQs, filmes, animações, séries e games, a “cidade gótica” se consolidou no imaginário como um microcosmo da sociedade humana moderna, com suas relações de poder, políticas, econômicas, com intrigas, crimes, violência, insanidade coletiva e problemas sociais. Para chegar à representação desta atmosfera ao longo desta trajetória, uma série de referências foram importantes, desde os quadrinhos de detetive de sua origem (Detective Comics, que gerou tanto o universo, como a sigla D.C), como gêneros noir, gângster e policial. Todd Phillips, dentro deste mesmo processo, se vale de uma série de elementos já construídos por décadas, mas realizando uma releitura bem particular, fazendo por exemplo um paralelo entre Gotham e a Nova York de Taxi Driver e outros filmes de Martin Scorsese e de sua geração, nos anos 70 (NY, por sua vez, já era a cidade inspiradora para o desenho deste lar de Batman e Coringa).

Se temos já um filme com todos este repertório, entre um imaginário já construído e uma releitura, o diretor acrescenta uma nova camada da contemporaneidade. Portanto, a Gotham de Phillips é a cidade de seu filme, num fictício 1981 e, ao mesmo tempo, a cidade “histórica” da saga Batman em suas diferentes mídias, a NY dos anos 70 e 80 de Taxi Driver (e outras representações de cineastas da “nova Hollywood”), junto a referências em fenômenos contemporâneos, que partem de uma matriz de condição social atual para diferentes desdobramentos. O filme, portanto, mostra a capacidade da obra de arte de ser uma fotografia de seu tempo, como um campo de diferentes forças, em choque ou em congruência. Inclusive com aspectos que podemos não gostar, mas não podemos fingir a sua inexistência. Diferente das ciências sociais e humanas de forma geral, o filme e as obras de arte como um todo não têm um compromisso científico metodológico com uma análise rigorosa dos fatos, mas sim com a produção de um universo especulativo, perpassado por alegorias, representações e pensamentos, não menos ricos (embora diferentes) para a reflexão tanto sobre a arte e a linguagem, como sobre os processos da vida, da realidade e da história.

(Continua….)

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